quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Prefácio, ou making of ou algo assim

A Guilda dos Melancólicos foi um sonho decantado de momentos que a vida me trouxe. Os sonhos nunca são a expressão exata da vida. E no entanto simbolizam-na. Foi assim que senti e escrevi esta história.  Hoje passaram mais de dez anos sobre os factos que me inspiraram. Mudou tanta coisa.  As coisas já tinham começado a mudar quando finalmente concluí o romance em 2008. Mas agora as rugas estão ainda mais vincadas na idade das coisas e ao reler com a quase surpresa do esquecimento dei por mim a pensar nisso.

Foi por isso que decidi publicar o livro online. Como quem atira uma garrafa ao mar que quem sabe recupere quando se voltar a esquecer de novo. Um dia voltarei a recordar estes dias especiais. Por estes dias despeço-me provisoriamente das memórias.

Mas não sem antes fazer o que é devido e que está por fazer. Agradecer aos afectos que me inspiraram. A vida é engraçada. Calculei que teria pudor de revelar alguns nomes. E no entanto há pouco recebi uma mensagem da pessoa que mais inspirou a Ana. Podia-se aborrecer de que a romanceie como uma excêntrica, embora ambos saibamos que o é um pouco e embora saibamos que é muito mais do que isso e do que aquilo que a história conta. Mas não estava zangada. Enviava-me um sorriso e um beijo e dizia "Passaram dez anos, já viste?"

Não há mesmo motivos de rancor. É uma história doce mesmo na tragédia de algumas decepções profundamente humanas.

E é por isso que sou grato a todos os destinos que cruzaram o meu. O da Catarina e da Ana e da Elsa e da Melina. O Romão, o Lumbrales, o Pedro. A Aurora, a Inês. A minha família. E todos aqueles, as pessoas,    os tempos e espaços que às vezes em apontamentos subliminares quis transformar em conto.

Mas sobretudo dedico esta história à Bethânia. A Guilda dos Melancólicos somos nós, querida!

:o)

Até sempre


Hoje - A Guilda dos Melancólicos - Fim


Hoje

Sexta-feira, 19 de Setembro de 2008 

BSO
Fui o último a sair. A sala parece diferente, despida de gente e de som, lida pelo cansaço que a esta hora trazemos nos olhos. É. Depois descer à garagem, entrar no carro. 
E então, quando o focinho do Opel espreita para lá do portão, o rádio caça finalmente o sinal de FM e ouvimos dedilhar a guitarra eléctrica, com aquele eco fantasmagórico do arrastar de som. Sincronia, poesia. Que diabo, eu sei que é só coincidência, a música toca a toda a hora, não é difícil. Mas soou tão bem! E apetece-me abrir a janela e conduzir mais depressa. E recordo-me. De ti. E à desfilada pelo meu passado, até a anos longínquos e depois de novo, a galope, para ti. Como um videoclip de imagem tratada em que a cor se sature como idealizamos que as nossas memórias devem ser. Como a pôrra de um anúncio da Super-Bock! Cheio de polaroids pela estrada fora. A forma como sorria nas orais quando dava aquela resposta. As doidas das minhas amigas penduradas em mim. O primeiro beijo na Sara. O Afonso e a bola de Volley, a guitarra, o meu irmão, o sorriso lindo da Luna, vinho tinto e um charro, o cão a correr atrás da bola As minhas lágrimas, os meus sorrisos. Tu. Sim, sim, tenho saudades e, sim, ainda te amo. Mas nem é essa a moral. Estou aqui, sei sorrir. Desato o nó da gravata, aumento o volume do rádio. Perder-te não significa que não se ganhe a beleza do que aprendi. Sinto-me diferente. Sinto-me a caminho. Deve ser reflexo da estrada. Não sei. Nem é uma imagem original. Nem é uma banda sonora original. Lá está. É a música do Verão. Este Verão que definha em Outono. Pouco importa. Já todos sabem que sou o Pedro, o gajo que gosta de contar histórias. E as histórias de nada valem se não houver a quem as contar, certo? Godspeed, my friends  ;o)  

Posted by Pedro


All of these lines across my face
Tell you the story of who I am
So many stories of where I've been
And how I got to where I am
But these stories don't mean anything
When you've got no one to tell them to
It's true...I was made for you

Ciclos fechados - A Guilda dos Melancólicos


Pedro ajeita o nó da gravata vermelha sobre a camisa branca. Duas pancadas suaves na porta soam atrás de si – “Entra.” – “Bruna? Pedro, o Príncipe das brasileiras! Andámo-nos a tratar bem na minha ausência…” – o irmão sorri enquanto veste o casaco escuro – “Ainda não te contei essa. É a nova administrativa do escritório.” – “Escolhida pelo tarado do Sá que a anda a comer, aposto.” – “Isso é que é o mais curioso. Fecha lá a porta, vou-te contar.” - e a voz de Pedro modera-se, para que não o ouçam no andar de baixo.

Os dois amigos deleitam os olhos na vista de mil luzes até onde o olhar alcança, no rio, no negro opaco daquela noite prazenteira de final de ano. A sala panorâmica do Sheraton é um dos miradouros previlegiados para amar esta cidade. E por isso Álvaro Lobo e Francisco Sá gostam de contemplar a paisagem, enquanto provam a frescura do segundo Martini daquele jantar de Reveillon – “Olha, pedi ao teu miúdo que convidasse a Bruna para a Passagem-de-Ano com os amigos dele.” – Álvaro levanta o sobrolho – “Será isto tudo prudente, Sá?” – “Que diabo, não me pediste que ajudasse a pequena?” – “Mas que lhe desses emprego lá na sociedade e peças agora ao Pedro que a leve a sair não era bem a minha ideia, Xico!” – “Ah, tu nunca tiveste sentido de humor, meu velho!” – Sá ri-se – “Não te preocupes, Álvaro. A rapariga quer esquecer, não recordar. O passado vai ficar enterrado, como deve ficar. E depois… … é uma míuda, Álvaro! Fica melhor com um miúdo decente como o Pedro. Que lhe pode apresentar pessoas, que a tratará com decência. Talvez isso, mais do que o salário que lhe pago, lhe salve o que lhe reste da alma. Já chega de trastes como nós… … e para ele, olha, também é bom. Cresce-se nas relações. Muitas relações, muita coisa diferente. Viver! O puto precisa de viver!” – “O que é que lhe contaste?” – “A verdade toda. À excepção do que mandou a sensatez que calasse. O Pedro não é parvo! Sabe o que a casa gasta comigo. Sabia que a Bruna tinha que trazer água no bico. Olha, contei-lhe a verdade! E deu-se o milagre: o Filipe ganhou vida! Han, não ficas contente? O teu alter-ego vive para além de ti e é meu amigo de copos!” – gargalhada para Francisco, meio sorriso para Álvaro – “E como é que ele reagiu?” – “Ao seu estilo. Perguntou-me se ser ama-seca de brasileiras lhe valeria um aumento. E depois, claro, disse que sim, que daria uma mão à rapariga. O teu puto é bem decente, meu velho...” - “E tu também não és tão mau como isso. Este ano fizeste algumas coisas boas, já pensaste nisso, velho mafarrico?” – “Estou a ficar mole, meu velho, é o que é… … mas olha! E quando é que vamos às gajas?” – “Põe-te quieto, meu sacana, vá, sorri e muda de assunto, vem aí a Sofia.” - “Vá, brindemos!”


Please allow me to introduce myself
I'm a man of wealth and taste
I've been around for a long, long year
Stole many a man's soul and faith

And I was 'round when Jesus Christ
Had his moment of doubt and pain
Made damn sure that Pilate
Washed his hands and sealed his fate

Pleased to meet you
Hope you guess my name
But what's puzzling you
Is the nature of my game


“Pousas-me esta travessa na sala?” – “Claro, Pedro, me dá.” – Eduardo deslumbra-se no rabo empinado da brasileira e abana a cabeça com estupefacção de uma teatralidade em overacting. O irmão ri e abre-lhe os olhos em aviso – “E quem vem mais?” – “Vem o Hugo, o Afonso e a Guida, a Luna e o César, mas esses vêm um bocadinho mais tarde. E as tuas amigas?” – “Devem estar a chegar.” – “E que tal são?” – “Epá, vais gostar delas. A Beatriz e a Paula são umas curtidas. E vais babar-te com a Beatriz, é muito o teu estilo.” – “Bruna, queres ajuda?” – Pedro acorre a colocar uma base de cortiça que ampare a terrina quente que Bruna carrega. 

O ano de 2004 caminha as suas últimas horas. E na casa nova de uma vida nova de Pedro reunir-se-ão vidas cruzadas de afectos antigos, novos e por desvendar. Há alquimias que se adivinham quando as almas se cruzam. Mesmo se por vezes são juízos precipitados e outras deduções elementares. E há prodigíos que nos surpreendem, cavando-se no peito contra todas as probabilidades do que a vida parece ser. Na casa do Bairro dos Pescadores da Caparica, dir-se-ia, tudo se cruza. Daqui a pouco, Pedro abraçará a sua Luna e trocará um aperto de mãos francas com um rapaz chamado César. Provavelmente demorará a chegar o dia, ou talvez nunca chegue, em que ambos percebam que descendem em linha directa de uma outra amizade, que dois homens forjaram numa guerra distante e esquecida. Depois chegarão Paula e Beatriz, o grande Afonso e a sua Guida, Hugo. Virão as doze badaladas e a euforia de espumante a espirrar em redor. E as lágrimas de Bruna, surpreendida com um bolo sobre o qual ardam vinte e uma velas. Música, dança, pinotes. E pela noite fora os convivas rirão e conversarão. E quando as trevas se aclararem na aurora redentora de mais um ano, pairará aquela sensação do milagre inexplicável de que já não se sentem estranhos, se o eram. De que talvez se tenham conhecido todos ao longo de mil vidas, para se perderem e reencontrarem ao longo da estrada. 
Mas por agora o relógio ainda nem bate as dez da noite. É cedo, nem todos chegaram. Pedro ainda não sabe aquilo que nunca saberá completamente mas que tem a vida toda para ir descobrindo. No silêncio das suas horas introspectivas, nos olhos dos seus mais queridos amigos, nas peripécias de tantas existências cruzadas pela cidade em que é só mais uma luz. 

“Estás aí fora… … não tens frio?” – “Estou vendo a Lua, Pedro. Olhe só como está bonita!” – “Vocês brasileiras devem ter alguma coisa com a Lua. Mas, olha, estás bem?” – Bruna vira-se finalmente para um Pedro a assomar pela porta entreaberta para o pátio. Sorriso bonito – “Estou sim, Pedro. Olhe. Obrigado por tudo, viu?” – Pedro pisca-lhe um olho, sorri e volta para dentro. E Bruna fica ali, com um sorriso bonito, e uma lágrima prateada pelo luar a correr-lhe o rosto bronzeado. A morena dera de novo um jeito. Bruna já não se sente puta. 

“É uma rosa bonita.” – “É uma rosa vermelha.” – “É o que penso?” – “É que estou te abrindo meu coração.” – As bocas traficam um beijo – “E agora, vamos já para casa do teu amigo?” – “Depois. Primeiro quero-te levar a um sítio. Há algo que quero fazer antes.” – “O quê?” – “Verás.”
Naquele momento fechei os olhos e uma estrela secreta lá no céu brilhou mais intensa, a casar as cores com a centelha que me ardia no peito. A jornada encerrava-se. Para mim. À minha partida sobreviriam risos e lágrimas e vida e morte. Não é preciso ser anjo para saber que assim é. Há que saber chegar, há que saber partir, há que saber viver.
Luna e César caminham pela calçada, mãos enlaçadas. Irão à cidade antiga da Sé para que a morena cumpra um voto e presenteie Santo António com uma rosa vermelha que separará do cabelo negro. Uma oferenda de vermelho de gratidão ao Santo por amores findos e pelo milagre de um coração regenerado a amar de novo. Beijar-se-ão. Um beijo de amor. E talvez esse amor não seja eterno porque o amor é vida e a vida é efémera. Ah, Luna, mas na última noite deste ano e por muitos dias que se lhe sigam o sabor dos teus beijos terá o travo doce de amar.

Nada de que um Anjo ido chegasse a saber. Eu já voo de regresso ao meu Céu, em que Deus se comove com histórias de Amor. E nunca olho para trás. A minha crónica terminou ali e na minha retina prolonga-se artificialmente esse último momento, pela eternidade, como se perene fosse. A eternidade de um abraço. De um caixão que desce à terra. De um grito. De uma caminhada. A eternidade do Tudo. A eternidade do Nada.


That I would be good even if I did nothing
That I would be good even if I got the thumbs down
That I would be good if I got and stayed sick
That I would be good even if I gained ten pounds

That I would be fine even even if I went bankrupt
That I would be good if I lost my hair and my youth
That I would be great if I was no longer queen
That I would be grand if I was not all knowing

That I would be loved even when I numb myself
That I would be good even when I am overwhelmed
That I would be loved even when I was fuming
That I would be good even if I was clingy

That I would be good even if I lost sanity
That I would be good
Whether with or without you

Partidas e chegadas - A Guilda dos Melancólicos


O ecrã gigante anuncia os voos a chegar. Madrid, Berlim, Londres, Natal, Paris, Praga, Roma. Sofia e Pedro colam os olhos no voo TP8565, com informação de desembarque. Sofia ansiosa para que Eduardo apareça a qualquer momento pela rampa descendente que desemboca os passageiros vindos da área de recuperação de bagagem. Pedro distante, com os pensamentos em peregrinação pelas sensações recentes da noite anterior.

Sara Reis. Foi esse o nome que leu com o maior espanto no ecrã do telemóvel. Há muito que se perdera e esquecera a esperança deste telefonema no seu coração. E agora, não sabia porquê, Sara ligava-lhe. Primeiro hesitou sequer em atender. Sobretudo sentiu medo. E por isso “She will be loved” tocaria ainda por alguns segundos antes que Pedro resgatasse o telemóvel da mesa de trabalho – “Estou…” – um breve silêncio – “Pedro, sou eu…” – “Eu sei, Sara…” – “Ainda não apagaste o meu número. Vá lá...” – “Ainda não cheguei a essa fase.” – os ex-namorados tentam ser joviais. Mas ambos devem adivinhar a tensão recíproca. – “Estás bom?” – “Estou… … e tu?” – “Na medida do possível, Pedro. Tento estar.” – “Pois, fico contente…” – Silêncio do outro lado – “Olha, estou-te a ligar… … queria-te ver.” – Pedro hesita - “Posso-te perguntar porquê?” – “Por muita coisa. Não me digas que não, por favor.” – “Não, claro, não digo. Só queria perceber, Sara. Desapareceste. Passou um ano. Porquê agora? Acho que faz sentido perguntar.” – “Faz. Janta comigo na Quarta-feira.” – “Quarta não posso, o meu irmão regressa de Erasmus. Temos um jantar em família.” – “Amanhã então, por favor. É importante para mim.”

Nessa noite Luna faria exactamente como se recordava do que lhe tinha dito o amigo. Acendeu incenso, velas, colocou o álbum favorito de Djavan no leitor, abriu os cortinados para poder sentir a luz da lua lá fora. Encheu um copo de vinho que saboreou longamente. Depois tirou uma folha ao bloco de papel de carta e pegou na caneta Montblanc que lhe oferecera o pai.

Meu João,
Está fazendo um ano que partiste. Eu ainda sinto uma saudade imensa e creio que essa saudade vai durar enquanto viva. Eu não sei o que a vida trará mas sei o que vivi até aqui. E tu foste o grande, único para dizer a verdade, amor dessa vida. Vou recordar sempre com muito carinho cada momento desse tempo que passámos juntos, desde a primeira noite. 
Mas creio que é hora de ambos seguirmos em frente, meu querido. Eu não posso viver o que me reste da vida de recordar. Tenho que aceitar a vida e creio que tu entenderás isso. Tu sabes que conheci alguém. Alguém que me fez sorrir de novo, sentir. E preciso de me dar essa chance. E tu também, João. Não sei bem onde estás e para onde devas ir. Mas vai, amor, vai. Parte! Leva-me no peito. E um dia, se Deus quiser, a gente se vê de novo. Não sei onde. Mas a gente se vê. E vai sem peso. Vai sem mágoa, João. Se foi assim, tinha que ser. Não tivemos culpa. Nos demos ao amor. Isso não é ter culpa. E mesmo nas pequenas falhas de cada um, as minhas ou as tuas, que culpa justificaria isto? Por isso eu acho que deve haver motivos para que o nosso tempo juntos fosse tão curto mas não tem nada a ver nem com castigo nem com culpa. E se culpa houvesse eu já perdoei tudo. Foste um anjo para mim. 
Mas agora temos que seguir caminhos separados. E recordar só de vez em quando. Até um dia…
Até sempre, amor.

Luna

Depois Luna colocou a carta fresca sobre um prato de barro e com o isqueiro ateou-lhe fogo. Primeiro uma chama fina lambeu a aresta do papel. Para depois crescer numa labareda forte e fugaz, a morrer ao cabo dos segundos na incandescência ténue que antecede ser-se só cinza morta – “Como a vida…         … a história da nossa vida arde como uma carta de despedida.” – Luna está para ali siderada a olhar o vazio. Decidiu que amanhã seguirá em frente, definitivamente. Irá retemperar a alma à foz do sangue, às origens. E depois regressará a Lisboa e esgravatará em si essa coragem de ser de novo feliz. Mas esta noite, esta última noite, a Casa da Boneca será ainda de luto pelo amor que aqui foi inquilino. Luna dormirá depois. Quando acordar estará de novo só, verdadeiramente de regresso à solidão daquela casa. Para João chegou o momento de seguir o seu Guia – “Estou pronto. Leva-me. Adeus, Boneca…”

Pedro e Sara entraram pela porta, à média luz acolhedora do restaurante. Do bar, o gerente magriço de ares efemeninados sorriria para Pedro e faria sinal a indicar a mesa reservada. Sara olha em redor – “Espaço muito giro. Já conhecias?” – “Já. A primeira vez vim meio ao acaso, com uma amiga. Agora venho cá muito. É, é muito agradável. Sentamo-nos?” 

Finalmente Eduardo apareceu. Reconheceu a família por entre os rostos dos que esperavam cá em baixo e a boca rasgou-se num sorriso. Pedro despertava da ausência dos seus pensamentos – “Caramba, puto, que saudades!” – exclamou numa indagação muda dentro só de si – Eduardo vinha mais magro. E cortara o cabelo que agora se desgrenhava numa moldura negra luzidia do seu rosto olheirento, barba por fazer. Mas um semblante feliz. As malas caem no chão. Os irmãos abraçam-se. A pele das testas funde-se numa cabeçada meiga. “Que saudades, Eduardo, que saudades, míudo!” – “Vá, não me faças chorar aqui. Mas deixa-me olhar para ti!” – Riem. Riso meio tonto dos reencontros em dias felizes – “Deixa que te leve esse saco. E vai lá dar um beijo à mãe antes que a mulher desmaie.”.

“Estás bonito.” – Pedro meneia a cabeça e escolhe uma azeitona – “Obrigado. E tu estás loura. Bom, enfim, foste sempre loura. Estás é muito mais loura.” – esgar triste. - “O muito louro em vez dos brancos.” – Querias-me então falar…” – Pedro apoia os cotovelos sobre a mesa, une as mãos como em posição de prece. Fita Sara – “Queria…” – os olhos da rapariga curvam-se à mesa e ao peso das emoções dentro de si. Depois encara de novo o rosto do ex-namorado. O olhar em humildade meiga. A boca torce-se em algo que não se pode descrever com exactidão mas que será talvez afecto e tristeza – “Há coisas que senti que queria partilhar contigo. Para ficar bem, sabes? Para também ficares bem.” – “Muito bem, ouço-te.” – Pedro sente coisas que também não sabe definir. Coisas que queria que já estivessem absolutamente mortas mas que pulsam lá no fundo. Emoção. Sim. Não seria verdade perfeita dizer-se que Pedro esqueceu Sara, que o amor que lhe devotou seja uma cicatriz fechada e fria. Mas este Pedro já não é porém o Pedro que amou Sara, nem reconhece completamente em Sara essa sua namorada de então. E portanto nem os sentimentos que os unem deveriam ser agora já os mesmos. Seriam o quê? Não sabe. Mas ainda fazem pulsar o coração. São coisas que ainda assustam – “Eu amei-te sempre, Pedro. Acho que ainda te amo.” – “Oh Sara, então se…” – “Pssiu… … peço-te por favor, deixa-me dizer-te tudo o que vim aqui para te dizer…” – a mão de Sara prende a de Pedro – “… a sério, escuta-me até ao fim…” – Pedro assente e não insiste – “Eu sei que estive mal contigo. Não demorei a perceber isso depois daquelas coisas que te disse. Foi desespero. Não é fácil aceitar as coisas que eu tinha que aceitar. Era a minha mãe.” – Pedro em silêncio - “E por isso não foi por não ter a noção do meu erro que me mantive longe de ti.” – “Foi porquê?” - “Foi porque nos quis dar a ambos a hipótese de uma vida mais fácil. Em que eu pudesse ter uma mãe. Em que tu não tivesses que ter o peso da vida que tenho.” – “Como assim?”

Pedro abre o louceiro. Com cuidado, vai tirando peças do serviço Vista Alegre e distribuindo pela mesa ampla. O irmão entra com a garrafa de Barca Velha – “Vai abrindo para respirar.” – “Cheira bem lá dentro.” – “Camarão tigre, à moda do pai.” – é uma noite de reencontros, saudade e felicidade para os Lobos. A vida vai bem. Eduardo regressa. Em Janeiro sairá o oitavo romance da autoria de Sofia Pizarro – “Flores que definham” - Álvaro fechará o 2004 da Lupustur com a satisfação evidente de um bom ano. Pedro perdeu e recuperou o seu sorriso antes que se fechasse 2004. A vida faz-lhe de novo todo o sentido e cresce sede. Talvez mais do que nunca. Está ali a compor a mesa para um jantar de abastança da família. Agora é tempo do agora e do depois. Ontem findou um ciclo. Um ciclo que chorou em catarse, a sua mão cativa da da mulher que amou, ama, está a deixar de amar. Nem sabe bem. Um dia o seu coração fechará definitivamente esta chaga de um amor dos seus verdes anos. Mas muito antes disso Pedro viverá. Vive já. Não quer esquecer as canduras e as agruras da época que se fecha. Mas a sua alma pulsa e sente e quer beijar com um hálito doce.

As mãos esguias arrastam o trolley, a matraquear as rodinhas plásticas pela passadeira ascendente. Voo TP3788, destino a Heathrow, Londres. Há uma sensação estranha de solidão naquela partida. Partida sem lenços brancos, sem mãos que se acenem. Por isso nem olha para trás. Caminha com abandono e vaga esperança de quem lança os dados. Pela mão uma só mala e um bilhete só de ida.

É para lá das duas da madrugada. Deu comida e água ao Diogo. Trancou a porta, despiu o sobretudo que lançou em pontaria sobre o bengaleiro. Tirou o camisolão negro de gola alta. Depois acocorou-se perante a lareira da sala e com um carinho contemplativo ateou o fogo. Servirá ainda copo meio de whisky e depois Pedro Lobo recostará o corpo ao sofá e deixará pender o corpo, siderado no vazio. Pensativo. Na sequência agitada das horas anteriores não houvera tempo para reflectir tudo. Para estar só consigo e pensar. Agora lança-se a tentar imaginar os dramas de Sara naquele ano duro em que se tinham amputado um ao outro. O descalabro total de um modo de vida naquela família. Pedro imagina. É quase como se recordasse. Os homens do tribunal que esventravam a casa de todos os seus bens, a estiva para as carrinhas. Os polícias, o olhar curioso da vizinhança, um pai de família a chorar. Uma casa vazia em que já não há vozes que façam eco. Trancada a porta, um edital a anunciar o leilão em hasta pública, colado à vidraça empoeirada – Pedro acende um cigarro. A viagem prossegue. – as reuniões familiares dos Reis, a juntar sobre a mesa as notas soltas a sobrar de mais um dia de sufoco e angústia. Cansaço e a réstea de tranquilidade de resguardar à mesa o pão do dia seguinte. Vida sobrevivida sem poder pensar além. Dia após dia. Cada dia. Mais um dia de descobrir mais um problema e mais uma dívida e mais um credor e mais uma mentira e mais uma ponta de desespero numa adaga talhada em mentira e traição e desvario da loucura por tantos anos velada de Marília – “A minha mãe é bipolar. É doente. Toxicodependente. E sim, se quiseres podes dizer que é uma mulher má. Tive que sofrer para perceber que a loucura a cavou até ao ponto em que não resta nada dentro dela. Só merda. Só devaneio, egoísmo, megalomania, mentira, muita mentira, muita manipulação. Tudo merda, Pedro, muita, muita merda dentro daquela alma.” – até que Marília numa madrugada se evadiria da casa velha e miserável da Graça. A roubar na fuga a última peça de ouro que a filha mais velha guardara da necessidade, recordação de um amor que deitava a perder. Para trás Marília deixava uma família e uma vida destroçada. Credores, desesperos, ira, vidas em cheque, um volumoso processo-crime, os advogados de um banco de cabelos em pé – “Mas quanto?” – “Quanto?” – “Sim, valores.” – “Ninguém sabe bem. Seiscentos mil Euros, talvez mais. Eu e o meu pai perdemo-nos. E desistimos.” – “E o dinheiro, foi para onde?” – Sara encolheria os ombros – “Casinos, luxos, desavarios. Amantes. Não sei, Pedro. Nunca conseguimos perceber tudo, apenas partes. A minha mãe manteve uma vida dupla que… … olha…” – abana a cabeça em desalento. Toalha ao chão para uma filha cansada – “E os outros? O teu pai?” – “O meu pai... … a empresa teve que fechar. Arranjou emprego numa oficina. Vai vivendo.Vamos vivendo. Manda-te um abraço. Disse-lhe que jantava contigo. Ele gostou sempre muito de ti. Sente vergonha de tudo, sabes?” – “Que não tenha. Manda-lhe outro. E a tua irmã?” – “A minha irmã preocupa-me. Tem muita raiva. Isolou-se. Não consigo comunicar com ela.” – a voz embarga-se – “Então?” – “A Filipa não está a aguentar tudo isto, não creio que aguente” – “Merda…” – Pedro atónito – “Não sei o que te diga… … o que é que eu posso fazer para te ajudar?” – A loira meneia a cabeça – “Nada, Pedrinho, escuta… … eu quis-te ver para que soubesses, entendes? Que percebesses. Que a minha vida e as minhas opções não foram nada fáceis desde que te abandonei” – agora Sara chora enquanto fala – “Eu… … eu se pudesse… … e quisesse ser egoísta… … dava tudo para voltar atrás. E ter-te. Estar contigo. Mas troquei isso. Na ilusão de ter o amor da minha mãe. De ambos podermos ser felizes. Eu e tu. De encontrar um amor que não soubesse dos erros dela. Que não tivesse que odiar. Quis isso. E consolei-me em que te desiludia mas deixava que tivesses a tua vida sem os pesos das minhas merdas. Percebes?” – Pedro acede – “Sim…” – “Foi tudo tão duro, querido. Ao início dei por mim a vegetar, a encher-me com a merda dos anti-depressivos. A arrastar-me no hospital. Dei por mim a beber. Porra, Pedro... … eu quis-me destruir! Passei metade deste ano a destruir-me e a pensar em morrer, como a porra de uma borderliner! Numa espécie de alucinação má que nem te sei explicar. Dormi com os homens errados. Odiei-me. Odiei a minha mãe. Odiei-te a ti por não estares ali – o tom de Sara é pausado, como se as suas palavras nem contivessem o rastro de tempestade e devastação que descrevem Infinitamente triste. E agora as lágrimas já correm em caudal pelos olhos de ambos – “Quando estás mal o mundo alimenta-se de ti, acredita. Nunca fiques mal, Pedro, nunca deixes que te façam mal. Há sempre os que te fazem mal, se puderem.” – Silêncio – “Dormi com o Rui, merda… … cheguei a esse ponto. Que esse… … asco, se aproveitasse do meu desespero.” – “E agora…?” – “Estou melhor, estou melhor… … estou a fazer psicoterapia. Estou a resolver as minhas merdas. A tentar ajudar o meu pai. E por isso te quis ver. Quis que soubesses. O quão importante foste e és para mim…” – “Sara… … eu não sei se nós dois ainda poderíamos…” – o dedo delicado de Sara repousa-se nos lábios para que se calem – “Psssiu. Não digas nada. Eu sei. O futuro é de Deus e o presente eu sei que não é nosso. No início de Janeiro parto para Inglaterra. Vim também para me despedir de ti.” – “Inglaterra?” – “Vou trabalhar para Londres, fazer investigação.” – encolhe os ombros – “Vou tentar reconstruir a minha vida. Quem sabe a vida ainda tenha alguma coisa para mim…” – Pedro hesita. Nunca pensou que aquele dia e aquela oportunidade chegassem. Mas, sim, hoje é o dia certo para redimir o passado e espantar fantasmas a salvaguardar o futuro. Sara tem razão – “Sabes, Sara, há algo que também te quero dizer… … em tudo o que sucedeu. Eu hoje também sei onde te falhei.” – “Oh, Pedrinho, tu nunca me falhaste…” – “Escuta, falhei sim. Lembras-te daquele dia em que pedista que te tirasse de casa?” – Os olhos de Sara, baixam à mesa – “Sim, lembro...” – Foi aí. Devia ter feito o que me pedias.” – “Oh, tu não…” – “Agora sou eu que te peço, não digas nada. Sei que sim, que o devia ter feito. Que se nesse dia tivesse sabido ser mais homenzinho, tudo talvez tivesse sucedido de forma diferente. E peço-te desculpas. A sério, Sara, perdoa-me.” –Um momento de mágica suspensão do tempo. Um esgar de doçura melancólica - “Eu perdoo-te. Há muito que to perdoei.”

O jantar prosseguiria pelo serão na Mercearia da Comida, no coração do Bairro Alto. Os amantes perdidos pelo destino davam pela última vez uma mão terna sobre a mesa. Saborearam os despojos da garrafa de vinho tinto sobre a mesa e recordaram mil e um momentos do amor que os trouxe de mãos dadas desde a inocência da adolescência até serem adultos. Raramente as coisas são para sempre. Mas ambos sabiam que ainda assim aquele amor valera a pena e marcara duas vidas. E por isso foi uma noite para que se recordassem, antes que se despedissem. As férias no Algarve, a “lua-de-mel” de Cuba, as tardes de ternura nos jardins de Belém, a mordiscar pastéis de nata, os passeios, as conversas, a química das peles. Ah, o amor, merda, o amor!” – perante o olhar intrigado do magriço que generoso concede tempo para lá do regulamentar aos dois clientes que sobram num restaurante que já fechou a porta, Pedro e Sara riem numa ilha efémera de felicidade a dois, enquanto as lágrimas lhes lavam o rosto. Por uma última vez a dois.


I see you, the only one who knew me
And now your eyes see through me I guess I was wrong
So what now it's plain to see we're over
And I hate when things are over when so much is left undone

And I said, ?What about breakfast at Tiffany's?
She said, "I think I remember the film?
And as I recall, I think, we both kinda liked it
And I said, "Well, that's the one thing we've got"

Coisas estúpidas - A Guilda dos Melancólicos - Metamorfoses, escolhas e um sonho de dominó - Parte III


As Histórias na realidade nunca começam nem nunca acabam. E por isso não é possível contar uma história acabada. Os narradores mais hábeis apenas extraem dimensões particulares do enredo do Universo, com a precisão de um bisturi que crie a impressão de um ciclo que se abra e encerre em pontos certos e simbólicos. Mesmo Deus fez questão de fazer ver isso aos seus Anjos - “Tragam-me crónicas dos vossos périplos. Mas Deus vos livre de quererem perceber tudo! Aquilo que vos antecede e aquilo que se seguirá à vossa partida.” - E por isso para mim descer dos Céus e espreitar vidas tem sempre sabor a coisa de quem entra na sala a meio do espectáculo. Dessa perspectiva, no quanto vos posso contar por ter visto, os factos que vos tenho vindo a relatar começaram nessa noite trágica em que morreu o rapaz que nessa vida se chamou João. Mas pelos vistos poderia ter feito recuar estas memórias salteadas a uma guerra distante em outras paragens. Mais longe até, de facto em facto, até ao início da vida. Mas não divaguemos tão longe. O que é evidente é o paradoxo de que não é possível perceber uma história porque uma história é uma rede prodigiosa de muitas histórias, de escolhas e acasos. A hesitação de um comando no gatilho, nados mortos, vidas e amores e desamores, encantamentos de magia e do coração e da placidez do espírito, potenciados ou perdidos em encontros e desencontros, às vezes a fazer depender vida e morte de passos em álea à esquerda ou à direita. E uma legião de Anjos a planar sobre a cidade, guardas tutelares e cronistas de tantas existências quantas pudermos contar. E assim tanto faria começar como começámos e pedir-vos que esqueçam tudo. Ou melhor, não, não esqueçam nada! Recordem tudo! Mas não se viciem nesta minha perspectiva enviusada de anjo e meditem que poderia tudo ter começado de outra forma…

Por exemplo, alguns dias antes, naquela noite de chuva copiosa do dia 19 de Dezembro de 2003.

Era uma vez…


A prostituta colava o corpo ao balcão. Calças justíssimas com a cintura descaída. O branco a desvelar em semi-transparência o corpo curvilíneo e o fio dental preto a perder-se entre as nádegas achocolatadas. Cotovelo sobre a mesa, queixo a esborrachar-se na palma da mão e o enfado do início de noite no Skinframe. Bruna beberica espumante. A casa está pouco mais do que vazia. E de súbito som estridente de vidro a partir sobre a mesa. Confusão com o grupo ruidoso da sala do fundo. Paula fala alto e gesticula. Os seguranças acorrem nessa direcção. A prostituta e o barman grisalho dos olhos papudos trocam um olhar de recíproco entendimento - “O russo ainda vai quilhar a tua amiga.” – Bruna encolhe os ombros - “A Paula morre de medo dele…” – “O russo acha que é teso mas isto ainda não é a Rússia. O Patrão ainda o fode.” – e depois? Rala-se lá Bruna!

Era uma vez…

“Vá lá, caralho, estás armado em conas para quê?!” – João ainda argumentaria que não – “Epá, eu tenho que ganhar juízo!” – “Ganhas amanhã. Vá liga lá à gaja e diz-lhe que vens beber um copo com a rapaziada.” – E agora senta o rabo espaçoso no veludo desgastado daqueles sofás - “A Irmandade… “ - que é como dizer a malta da Redacção quando se juntava para copos e gajas em noites desgarradas. Enche de novo o copo da garrafa de whisky e morde uma pipoca. É quando cerra os olhos por um instante que tem a certeza que está perdido de bêbedo. O grupo espreguiça os corpos, mulheres atarrachadas ao colo de cada um, braços ao longo do sofá a tocar a pele, whisky sorvido. Risos. As conversas de merda do costume. As gajas, os gajos. Mais uma noite. E João embriagado. A tentar alinhavar ideias confusas sobre o sentimento claro de que não devia estar ali, de que ama a namorada e devia ir para casa. E no entanto ali está. Com o sangue a ferver e a mão a repenicar no lóbulo da orelha daquela loira pintada – “Vâmos?” – “Hmmm, e onde coisa fofa?” – “Lá no Hotel…” – A mão desliza por entre pele e camisa em busca do peito – Paula repele – “Para... … se quer, vem.” – João balbucia - “Vá lá, amostra grátis…” – a mão do jornalista insiste e Paula repele-o – “Ah, estás a ser má comigo…” – Nova insistência – e de súbito o som estridente de vidro a partir sobre a mesa – “Eu mato!” – O olhar irado de Andreas, a empunhar a base de um copo estilhaçado em arma. Todos congelaram, menos Paula – “Vai embora, Andreas! Me deixa em paz, filho da puta!” – Grito, ira, súplica – E não houve tempo para mais. Um segurança abrutalhado imobiliza o eslavo atarracado num estrangulamento. O outro esmaga-lhe o rosto como se os dedos fossem garras e sussurra-lhe quase num beijo – “Tu vais-te meter nas putas e é já, russo d’um cabrão. Eu ainda te fodo!” – Mas Andreas nem reagiu. Deixou-se ficar com o corpo inerte, encarcerado à força bruta. Olhou o segundo negro. Nem foi em desafio, foi em desprezo. E depois o olhar resvalou para João, em estado catatónico, a meio tempo entre a embriaguês e o terror – “Estás marcado.”.

João deixa a água quente bater-lhe na cabeça e escorrer pelo corpo, provocando uma sensação redentora de autismo, em que só existe ele e a imersão da água. Depois encosta o antebraço aos azulejos pingados e neste a testa. Luna dorme na divisão ao lado e ele sente-se um perfeito imbecil. Não tinha nada que ter ido. Nunca devia ter bebido daquela forma, nem usado desse pretexto de alienação para se perdoar o desejo. João sopra, cerra os olhos e passa os dedos pelo cabelo loiro e eriçado. Naquele momento, em que o outro lhe apontou aquele copo partido sentiu-se muito pequeno. Pequeno de medo, de vergonha. Pequeno…                  … talvez a namorada tenha razão e Deus nos mande sinais pelos acasos da vida. Ele nunca foi muito dessas coisas e sempre riu. Mas agora sente-se castigado pela sua traição iminente. Castigado, não. Avisado. Avisado de que é tempo de assentar. Admitir que agora ama e está pronto para ser fiel. Não quer a noite que agora lhe parece uma selva. Ao lado Luna dorme. Ah, sim, vai escolher isso, dormir ao lado de Luna. E se é um palerma que não sabe beber sem pensar com a pila, e sabe que é, pois bem - “… que se foda a Irmandade! Temos todos que crescer, é o que é!” – Veste o pijama e deita-se a empurrar o corpo da namorada com doçura, a ganhar espaço. Luna sorri sem que se saiba bem porquê. Não acordou.

De alguma forma, João tinha começado a morrer nessa noite. E se havia uma moral por revelar em que assim tivesse que ser, ninguém o saberia dizer exactamente. João à beira do precipício da traição e da luxúria, fulminado por um raio divino. Como no sonho de um anjo, a vontade de João hesitara num momento de servidão a um prazer momentâneo. Mas provavelmente só ele se questionou depois daquele dia se havia algo a aprender da sua morte. De certo só que o seu corpo caiu fantoche a derrubar cartas e potenciar eventos da dinâmica do Destino. 


There is fiction in the space between
The lines on your page of memories
Write it down but it doesn't mean
You're not just telling stories




Karma - A Guilda dos Melancólicos - Metamorfoses, escolhas e um sonho de dominó - Parte II


Álvaro cola o corpo ao capim seco, envolto na sombra da noite. G3 com o cano a morder a distância de uns bons trinta metros, no desembocar do declive do caminho. Seria abusivo dizer que a Lua fosse pelos portugueses, mas o que é certo é que a sombra o era. E o luar, esse indicava o caminho e aconchegava a emboscada. Já esperavam há um par de horas mas não esperariam muito mais. Primeiro três vultos assomaram ao caminho. Fez mira mas havia que esperar pelo momento. Atrás vinha o grosso do grupo. Ao todo seriam uns quinze turras. A morte aguardava o segundo perfeito, em que mais caça se perfilasse à saraivada de fogo. Os olhos metálicos do comando focaram primeiro o semblante de um dos três pretos que seguiam à vanguarda. Depois a sua imagem liquefez-se em desfoque para que se definisse sobre si o fio metálico de uma mira. Depois de novo o rosto de Pedro, um rosto diferente, de narinas largas, olhos enormes de negro, pele de ébano, foi claro. Para que algo perturbasse Álvaro. Talvez fosse a expressão doce e melancólica do inimigo. Talvez lhe lembrasse aquele fantasma insistente de puto de rosto mutilado que urrava pela mãe. Ou talvez fosse qualquer outra coisa, reminiscência de vidas passadas, sabe-se lá. Pensar que aquela era provavelmente a última missão, a última emboscada, a última cavalgada com a morte. A comissão e a guerra abeiravam-se do fim, pelo menos para Álvaro. Em breve regressaria à Metrópole e tentaria esquecer tudo aquilo. Morrer agora seria estúpido. Mas matar agora também lhe parecia subitamente repugnante. Como se à distância do todo não lhe coubesse escolher não matar, mas agora sim. Poupar aquelas vidas, ou alguma que fosse. Levar o alforge da alma uma grama menos cheio no seu regresso. E por isso Álvaro está quase decidido. Uma baga de suor escorre-lhe pela testa e vai morrer no aço da espingarda. Pisca o olho, e visa o rosto de Pedro. Sim. O primeiro tiro será seu e falhará o alvo.

Joaquim e Eduardo caminham. As AK-47 pendentes dos braços, cano a apontar a terra – “Já viste a Lua?” – “Tu e a Lua, Quim…” – Joaquim não tem mais de dezassete anos. Eduardo talvez uns vinte – “Deixa-me gostar, mano. Nunca sei se a volto a ver.” – o irmão não lhe responde. Apenas pensa que se morrer que seja rápido. Não se quer ver ou sentir morrer – “Se sobreviver à guerra, quando tiver uma filha, vou dar ela à Lua.” – Eduardo talvez fosse responder. Mas não teve tempo.

A primeira bala furou-lhe o intestino. Caiu em dor, o corpo a esfregar-se em desespero na terra que se encarniçava no seu sangue. Álvaro paralizou por um instante. Paulo, o novato, não aguentara a pressão e disparou primeiro. Uma rajada curta. A primeira bala errou o peito de Eduardo mas derrubou-o, depois uma ou outra se deve ter perdido. No fim a cabeça de Joaquim estourou com um tiro certeiro, a entrar-lhe pelo queixo e a estilhaçar o topo do crânio. Cedo de mais para a emboscada. Tarde de mais para os três inimigos na dianteira. Os clarões das armas acenderam-se de ambos os lados da estrada e o corpo do terceiro rebelde crivou-se de balas e caiu morto. Os homens da RENAMO, lá adiante, responderam em rajada, enquanto mergulhavam no capim, a fugir do campo aberto da estrada. Por instantes só se viu faiscar o fogo das bocas dos canos, por entre a vegetação, a emergir na noite. E no fim o combate calou-se. A coberto da sombra, aqueles a quem a Lua não condenara tinham fugido.
Um olhar turvo, caído na terra batida. A vida expira, o corpo agoniza e os olhos de Eduardo vislumbram um esgar final e doloroso daquela vida efémera, de morrer por uma causa. Ergue a mão trémula coberta de sangue que lhe escorre das entranhas. O coração aperta-se. O cadáver do irmão caído junto a si, cabeça imersa numa poça de sangue e massa encefálica. Se conseguisse choraria. Mas até para chorar já é tarde demais. A luz apaga-se. Fosse de que modo fosse, já não restaria muito tempo. Mas a G3 de Álvaro matou-o mais depressa.

Foi a morte mais leve e a que mais lhe doeu. O tiro de misericórdia naquele desgraçado lembrou-lhe que era humano. Álvaro debruça-se sobre o cadáver. O olhar de Eduardo, perdido na contemplação fixa dos olhos de um morto. E Álvaro reconhece aquele mulato uma expressão doce e triste. Sinal provável de um modo como tivesse vivido e morrido. Azar, aquele parvalhão ter disparado, a roubar a Álvaro a redenção simbólica de talvez salvar uma vida, enfim, pelo menos não a ceifar ele. Mas no fundo assim foi. Guarda-o para si, mas Álvaro sabe que nesta noite nenhum dos seus tiros levou endereço certeiro. Só este último. Mas foi um tiro diferente. O resto não é consigo. A guerra cala-se dentro dele mesmo se prosseguirá na mata.
“Bem, vamos lá às medalhas.” – Serafim apaga a beata no chão e tira a tesoura de bicos recurvos do bolso do camuflado, a caminhar para os cadáveres. 


Paulo fuma excitado. Esta noite foi a primeira vez. Esta noite matou dois homens. O prémio foi a pistola do oficial na cara – “ Olha lá filho de puta, voltas a fazer-me uma destas e quem te fode aqui mesmo sou eu, ouviste, caralho?” – Agora não consegue dormir e caminha nervoso pelo pátio do aquartelamento. Recorda o medo, a adrenalina de varrer de rajada a emboscada, a repugna pelo estardalhaço sujo da morte. Como é seu hábito sempre que se inquieta, afaga o sinal de nascença que tem nas costas da mão direita. Por fim, inspira fundo e desconfia que não foi feito para sobreviver aquilo. Assim seria. Paulo morreria brevemente. Uma morteirada a ceifar a vida do comando que na sua guerra breve disparara meia dúzia de balas e matara dois homens. O suficiente para aprender que não lhe aprazia matar e morrer. Castigo demasiado para uma escolha estúpida da qual nem sabia bem o porquê.

As vidas redimem-se sempre das possibilidades goradas e dos erros. A guerra é lá vida para a contemplação e para sonhos doces à luz de Lua cheia? A guerra é o pântano do chafurdo dos brutos. Ao cabo de algum tempo, não há guerras justas que consolem os justos. Não é coisa de anjos a degolar dragões. É mester sujo de homem a sujar as mãos no sangue de outro homem. Quando se tem alma, morre-se lá na guerra e morre-se aos bocadinhos na decepção de a ter vivido pela vida fora. As balas que rasgam a carne ou uma tesoura de pontas recurvas que mutile cadáveres levarão o de menos. A morte, essa leva o quinhão maior da potencialidade da Humanidade. Os sonhos de amor ao luar de um adolescente chamado Joaquim, que adormecia todas as noites abraçado a uma espingarda, a sonhar com o corpo de uma negra bochechuda. As palavras e as imagens de um homem nascido com o dom da contemplação, sabe-se lá para quê. E o sorriso de um puto que cometeu a parvoíce de decidir que ia para os Comandos. Tudo isso perdido. Destinos, felicidades, tudo perdido! Quando os Homens decretam a Guerra, Deus suspende os desígnios do Universo. Nem Deus nem o Diabo, nem a Vida nem a Morte matam assim ao disparate. E por isso, até que haja trégua, ordena a Lei Marcial que o Destino não saia à rua. Depois? Depois baralha e volta a dar…   … partida após partida, o Universo renova-se na chance de corrigir a mão ou repetir erros. Eduardo poderá um dia estender os braços, fechar os olhos e iluminar um caminho sem emboscadas. Joaquim abraçará a Lua e peregrinará na convicção do amor. E Paulo será chamado a uma lição.


Last night I was walking through the shadows
Far away from all the music and the girls,
When I saw a soldier waiting with a woman in black,
And they stood without any word,
Just staring at a photograph of someone, and she began to cry.
For a boy left behind in the war,
Some boy left behind in the war;

O sonho de um anjo - A Guilda dos Melancólicos - Metamorfoses escolhas e um sonho de dominó - Parte I


Há uma lenda antiga que diz que Deus fez os anjos da carne dos homens, das asas das aves e com um fogo divino no lugar do coração. Ninguém sabe ao certo se assim é, só Deus. Da visão de anjos por mortais só restam os mitos, de que as raízes se perdem na noite dos tempos. E por isso não se sabe ao certo na Terra se existam. Os anjos, esses crêm na sua própria existência. Mas mesmo eles não saberiam dizer de que prodígio sejam fruto. Do pouco que se lembram, sempre existiram! Mas não sabem porquê. Tudo terá uma razão e por isso confiam que também eles façam parte de um desígnio maior. Bastam-se com isso. E portanto vêm e vão nas suas missões sem colocarem demasiadas questões. Não fosse o Diabo tecê-las e embaraçar-se o próprio Criador sem respostas. O que são, porque são, como são? Sim, como são! Nós Anjos não sabêmos como somos. Lá em cima não há espelhos, nem olhares. É-se, e pronto! Escolhe-se. Sente-se. Isso basta. E no entanto não me ofenderei se escolherem imaginar-me alado ou etéreo. Querubim, arcanjo de espada em punho. Mas a única coisa certa é que seja eu a contemplação de Deus sobre vós, homens. E podeis negar Deus, claro. Mesmo que Ele exista realmente, não creio que vos leve a mal. Podemos sempre fugir de Deus na suprema fé que é a ausência dela em si. Só não podemos fugir de nós próprios e portanto da contemplação dos Anjos, vá, dos demónios da nossa consciência, para lá de todos os álibis que inventemos, permitam-me apresentar assim aqueles que desconfiem destas coisas metafísicas. Talvez seja até melhor, se não separarmos demasiado as águas do Divino e do Profano, da Terra e do Céu, mais fácil será aceitar almas que se elevem, Anjos Caídos. Zig-zags do coração. Ah, sim, que os há! Talvez Deus tenha pensado em criar o universo como imutável. Mas até o Diabo se benzeria dessa Lei que desse sempre no mesmo, sem escolhas. Em que Deus fosse sempre Deus e o Diabo sempre o Diabo. Ou talvez não, talvez eu me confunda e no Céu e no Inferno as coisas tenham o seu devido lugar, cada um sirva a seu amo e o caminho seja eterno na mesma direcção. Pensando novamente, acho bem que o Divino seja feito de ideias puras e absolutas. E, olhem, que a Humanidade seja um reflexo de Deus em espelho tosco e baço, um em que entidades como eu reflectem imagem alguma – sabe-se lá se não serei eu o espelho – mas em que Deus se veja Homem e o Homem vislumbre Deus.


I sit and wait 
does an angel contemplate my fate 
and do they know 
the places where we go 
when we’re grey and old


As coisas mudam, os corações alteram a sua cor. Não há regra nem lógica que precise que isto motiva aquilo. Nem se sequer se sabe muito bem porque escolheram ser como eram antes que a alma inflectisse o rumo. Escolhas? Será que o Homem tem sequer escolha? Uns dizem que sim, e citam uma lógica intrincada de vontades e pulsões e medos e castrações. Um cavalo espantado no peito que nunca se sabe para onde irá a seguir, mas certamente escolherá o seu caminho. Outros dizem que são prisioneiros do destino. Outros juram que não, que são prisioneiros sim mas dos códigos genéticos de formiga ínfima em formigueiro. Mas isto são tudo cogitações de cativos da vida, em peregrinação pela estrada. Que vêm os astros no firmamento e sentem as pedras nos pés. Mas nunca tocaram o âmago do Sol nem o centro da Terra. Como eu.
Os Anjos, esses há muito que resolveram provisoriamente a questão. Reuniram em conclave para debater o tema. E no fim decidiram que o destino é imutável mas ao Homem assiste fazer com ele o que bem lhe aprouver. Da sentença Deus não foi tido nem o Homem foi achado. Tão pouco resolveu esta uma série de contradições intrínsecas que os seus detractores provavelmente lhe apontariam. E portanto vale ela sem explicar tudo para perceber eu um pouco melhor as crónicas que registo nas minhas jornadas.

Isto tudo divagações a propósito de um sonho que tive no meu sono de justo. Sonhei que era criança – disparate do inconsciente angélico de quem não nasceu nem cresceu - Fazia dançar o corpo em balancé improvisado com corda e tábua no braço mais vigoroso de um velho carvalho. E isto era no jardim de uma casa grande, branca e vazia. E é certo que o seu silêncio fantasma me impressionava. A casa estava cada vez mais vazia. Porque todos os dias, antes que o Sol fosse alto no horizonte, figuras humanas saíam à pressa a arrastar uma mala de poucos pertences. Assim, como vos digo, todos os dias. Mas nunca me lembro de ouvir sons de vida vindos do lado de lá das paredes, nem de ouvir gente que franqueasse as portas. E era assim. Eu baloiçava em eterna vigília sonhada. E nas vinte e quatro horas do dia, pelo menos como me pareciam a mim, o carvalho sofria o afago e as agruras de todas as estações. Rasgando-se em folhas outonais até à nudez, florindo de novo e repetindo o ciclo. Até que a dado momento, não sei porquê, me abandonei daquela letargia e disparei em corrida de gaiato, pardal a trote rua abaixo. Só que agora o Mundo não era como é o Mundo ou tampouco o Céu. Eram cartas de baralho, num corredor a afunilar. E assim que toquei a primeira ela vacilou para depois ceder a derrubar a sequência em cascata de dominó de cartas. Mas deviam ser cartas mágicas porque quando se tocavam sucediam fenómenos estranhos e nunca repetidos. Por vezes ouvia o eco seco de um disparo, ou o som de um sussurro, de um riso. Juraria que algumas cartas choraram e que do embate de outras ouvi o som de vidro a estilhaçar, para vos citar de memória algumas impressões de muitas inenarráveis. E eu, que a meio do corredor já não era criança mas de novo anjo que nem sabe bem como é, voava sob os destroços das cartas, umas caídas, outras encostadas à parede e outras estranhamente erectas em equilíbrio desamparado. Mas depois o corredor bifurcava e com ele o comboio de cartas. E o curioso é que em bifurcações a que se seguiam bifurcações, uma após outra, após outra, após outra, sucedia o fenómeno inconstante de umas vezes o castelo se precipitar em queda sequencial para um só lado ou em ambas as direcções. E eu sempre a voar em ubiquidade de ver tudo - como se no sonho fosse Deus e mais que anjo! – E eram tantas cartas, tantos corredores, tantos fenómenos, que às tantas me afoguei em pasmo de tanta coisa e de susto acordei.


Silêncio…