O ecrã gigante anuncia os voos a chegar. Madrid, Berlim, Londres, Natal, Paris, Praga, Roma. Sofia e Pedro colam os olhos no voo TP8565, com informação de desembarque. Sofia ansiosa para que Eduardo apareça a qualquer momento pela rampa descendente que desemboca os passageiros vindos da área de recuperação de bagagem. Pedro distante, com os pensamentos em peregrinação pelas sensações recentes da noite anterior.
Sara Reis. Foi esse o nome que leu com o maior espanto no ecrã do telemóvel. Há muito que se perdera e esquecera a esperança deste telefonema no seu coração. E agora, não sabia porquê, Sara ligava-lhe. Primeiro hesitou sequer em atender. Sobretudo sentiu medo. E por isso “She will be loved” tocaria ainda por alguns segundos antes que Pedro resgatasse o telemóvel da mesa de trabalho – “Estou…” – um breve silêncio – “Pedro, sou eu…” – “Eu sei, Sara…” – “Ainda não apagaste o meu número. Vá lá...” – “Ainda não cheguei a essa fase.” – os ex-namorados tentam ser joviais. Mas ambos devem adivinhar a tensão recíproca. – “Estás bom?” – “Estou… … e tu?” – “Na medida do possível, Pedro. Tento estar.” – “Pois, fico contente…” – Silêncio do outro lado – “Olha, estou-te a ligar… … queria-te ver.” – Pedro hesita - “Posso-te perguntar porquê?” – “Por muita coisa. Não me digas que não, por favor.” – “Não, claro, não digo. Só queria perceber, Sara. Desapareceste. Passou um ano. Porquê agora? Acho que faz sentido perguntar.” – “Faz. Janta comigo na Quarta-feira.” – “Quarta não posso, o meu irmão regressa de Erasmus. Temos um jantar em família.” – “Amanhã então, por favor. É importante para mim.”
Nessa noite Luna faria exactamente como se recordava do que lhe tinha dito o amigo. Acendeu incenso, velas, colocou o álbum favorito de Djavan no leitor, abriu os cortinados para poder sentir a luz da lua lá fora. Encheu um copo de vinho que saboreou longamente. Depois tirou uma folha ao bloco de papel de carta e pegou na caneta Montblanc que lhe oferecera o pai.
Meu João,
Está fazendo um ano que partiste. Eu ainda sinto uma saudade imensa e creio que essa saudade vai durar enquanto viva. Eu não sei o que a vida trará mas sei o que vivi até aqui. E tu foste o grande, único para dizer a verdade, amor dessa vida. Vou recordar sempre com muito carinho cada momento desse tempo que passámos juntos, desde a primeira noite.
Mas creio que é hora de ambos seguirmos em frente, meu querido. Eu não posso viver o que me reste da vida de recordar. Tenho que aceitar a vida e creio que tu entenderás isso. Tu sabes que conheci alguém. Alguém que me fez sorrir de novo, sentir. E preciso de me dar essa chance. E tu também, João. Não sei bem onde estás e para onde devas ir. Mas vai, amor, vai. Parte! Leva-me no peito. E um dia, se Deus quiser, a gente se vê de novo. Não sei onde. Mas a gente se vê. E vai sem peso. Vai sem mágoa, João. Se foi assim, tinha que ser. Não tivemos culpa. Nos demos ao amor. Isso não é ter culpa. E mesmo nas pequenas falhas de cada um, as minhas ou as tuas, que culpa justificaria isto? Por isso eu acho que deve haver motivos para que o nosso tempo juntos fosse tão curto mas não tem nada a ver nem com castigo nem com culpa. E se culpa houvesse eu já perdoei tudo. Foste um anjo para mim.
Mas agora temos que seguir caminhos separados. E recordar só de vez em quando. Até um dia…
Até sempre, amor.
Luna
Depois Luna colocou a carta fresca sobre um prato de barro e com o isqueiro ateou-lhe fogo. Primeiro uma chama fina lambeu a aresta do papel. Para depois crescer numa labareda forte e fugaz, a morrer ao cabo dos segundos na incandescência ténue que antecede ser-se só cinza morta – “Como a vida… … a história da nossa vida arde como uma carta de despedida.” – Luna está para ali siderada a olhar o vazio. Decidiu que amanhã seguirá em frente, definitivamente. Irá retemperar a alma à foz do sangue, às origens. E depois regressará a Lisboa e esgravatará em si essa coragem de ser de novo feliz. Mas esta noite, esta última noite, a Casa da Boneca será ainda de luto pelo amor que aqui foi inquilino. Luna dormirá depois. Quando acordar estará de novo só, verdadeiramente de regresso à solidão daquela casa. Para João chegou o momento de seguir o seu Guia – “Estou pronto. Leva-me. Adeus, Boneca…”
Pedro e Sara entraram pela porta, à média luz acolhedora do restaurante. Do bar, o gerente magriço de ares efemeninados sorriria para Pedro e faria sinal a indicar a mesa reservada. Sara olha em redor – “Espaço muito giro. Já conhecias?” – “Já. A primeira vez vim meio ao acaso, com uma amiga. Agora venho cá muito. É, é muito agradável. Sentamo-nos?”
Finalmente Eduardo apareceu. Reconheceu a família por entre os rostos dos que esperavam cá em baixo e a boca rasgou-se num sorriso. Pedro despertava da ausência dos seus pensamentos – “Caramba, puto, que saudades!” – exclamou numa indagação muda dentro só de si – Eduardo vinha mais magro. E cortara o cabelo que agora se desgrenhava numa moldura negra luzidia do seu rosto olheirento, barba por fazer. Mas um semblante feliz. As malas caem no chão. Os irmãos abraçam-se. A pele das testas funde-se numa cabeçada meiga. “Que saudades, Eduardo, que saudades, míudo!” – “Vá, não me faças chorar aqui. Mas deixa-me olhar para ti!” – Riem. Riso meio tonto dos reencontros em dias felizes – “Deixa que te leve esse saco. E vai lá dar um beijo à mãe antes que a mulher desmaie.”.
“Estás bonito.” – Pedro meneia a cabeça e escolhe uma azeitona – “Obrigado. E tu estás loura. Bom, enfim, foste sempre loura. Estás é muito mais loura.” – esgar triste. - “O muito louro em vez dos brancos.” – Querias-me então falar…” – Pedro apoia os cotovelos sobre a mesa, une as mãos como em posição de prece. Fita Sara – “Queria…” – os olhos da rapariga curvam-se à mesa e ao peso das emoções dentro de si. Depois encara de novo o rosto do ex-namorado. O olhar em humildade meiga. A boca torce-se em algo que não se pode descrever com exactidão mas que será talvez afecto e tristeza – “Há coisas que senti que queria partilhar contigo. Para ficar bem, sabes? Para também ficares bem.” – “Muito bem, ouço-te.” – Pedro sente coisas que também não sabe definir. Coisas que queria que já estivessem absolutamente mortas mas que pulsam lá no fundo. Emoção. Sim. Não seria verdade perfeita dizer-se que Pedro esqueceu Sara, que o amor que lhe devotou seja uma cicatriz fechada e fria. Mas este Pedro já não é porém o Pedro que amou Sara, nem reconhece completamente em Sara essa sua namorada de então. E portanto nem os sentimentos que os unem deveriam ser agora já os mesmos. Seriam o quê? Não sabe. Mas ainda fazem pulsar o coração. São coisas que ainda assustam – “Eu amei-te sempre, Pedro. Acho que ainda te amo.” – “Oh Sara, então se…” – “Pssiu… … peço-te por favor, deixa-me dizer-te tudo o que vim aqui para te dizer…” – a mão de Sara prende a de Pedro – “… a sério, escuta-me até ao fim…” – Pedro assente e não insiste – “Eu sei que estive mal contigo. Não demorei a perceber isso depois daquelas coisas que te disse. Foi desespero. Não é fácil aceitar as coisas que eu tinha que aceitar. Era a minha mãe.” – Pedro em silêncio - “E por isso não foi por não ter a noção do meu erro que me mantive longe de ti.” – “Foi porquê?” - “Foi porque nos quis dar a ambos a hipótese de uma vida mais fácil. Em que eu pudesse ter uma mãe. Em que tu não tivesses que ter o peso da vida que tenho.” – “Como assim?”
Pedro abre o louceiro. Com cuidado, vai tirando peças do serviço Vista Alegre e distribuindo pela mesa ampla. O irmão entra com a garrafa de Barca Velha – “Vai abrindo para respirar.” – “Cheira bem lá dentro.” – “Camarão tigre, à moda do pai.” – é uma noite de reencontros, saudade e felicidade para os Lobos. A vida vai bem. Eduardo regressa. Em Janeiro sairá o oitavo romance da autoria de Sofia Pizarro – “Flores que definham” - Álvaro fechará o 2004 da Lupustur com a satisfação evidente de um bom ano. Pedro perdeu e recuperou o seu sorriso antes que se fechasse 2004. A vida faz-lhe de novo todo o sentido e cresce sede. Talvez mais do que nunca. Está ali a compor a mesa para um jantar de abastança da família. Agora é tempo do agora e do depois. Ontem findou um ciclo. Um ciclo que chorou em catarse, a sua mão cativa da da mulher que amou, ama, está a deixar de amar. Nem sabe bem. Um dia o seu coração fechará definitivamente esta chaga de um amor dos seus verdes anos. Mas muito antes disso Pedro viverá. Vive já. Não quer esquecer as canduras e as agruras da época que se fecha. Mas a sua alma pulsa e sente e quer beijar com um hálito doce.
As mãos esguias arrastam o trolley, a matraquear as rodinhas plásticas pela passadeira ascendente. Voo TP3788, destino a Heathrow, Londres. Há uma sensação estranha de solidão naquela partida. Partida sem lenços brancos, sem mãos que se acenem. Por isso nem olha para trás. Caminha com abandono e vaga esperança de quem lança os dados. Pela mão uma só mala e um bilhete só de ida.
É para lá das duas da madrugada. Deu comida e água ao Diogo. Trancou a porta, despiu o sobretudo que lançou em pontaria sobre o bengaleiro. Tirou o camisolão negro de gola alta. Depois acocorou-se perante a lareira da sala e com um carinho contemplativo ateou o fogo. Servirá ainda copo meio de whisky e depois Pedro Lobo recostará o corpo ao sofá e deixará pender o corpo, siderado no vazio. Pensativo. Na sequência agitada das horas anteriores não houvera tempo para reflectir tudo. Para estar só consigo e pensar. Agora lança-se a tentar imaginar os dramas de Sara naquele ano duro em que se tinham amputado um ao outro. O descalabro total de um modo de vida naquela família. Pedro imagina. É quase como se recordasse. Os homens do tribunal que esventravam a casa de todos os seus bens, a estiva para as carrinhas. Os polícias, o olhar curioso da vizinhança, um pai de família a chorar. Uma casa vazia em que já não há vozes que façam eco. Trancada a porta, um edital a anunciar o leilão em hasta pública, colado à vidraça empoeirada – Pedro acende um cigarro. A viagem prossegue. – as reuniões familiares dos Reis, a juntar sobre a mesa as notas soltas a sobrar de mais um dia de sufoco e angústia. Cansaço e a réstea de tranquilidade de resguardar à mesa o pão do dia seguinte. Vida sobrevivida sem poder pensar além. Dia após dia. Cada dia. Mais um dia de descobrir mais um problema e mais uma dívida e mais um credor e mais uma mentira e mais uma ponta de desespero numa adaga talhada em mentira e traição e desvario da loucura por tantos anos velada de Marília – “A minha mãe é bipolar. É doente. Toxicodependente. E sim, se quiseres podes dizer que é uma mulher má. Tive que sofrer para perceber que a loucura a cavou até ao ponto em que não resta nada dentro dela. Só merda. Só devaneio, egoísmo, megalomania, mentira, muita mentira, muita manipulação. Tudo merda, Pedro, muita, muita merda dentro daquela alma.” – até que Marília numa madrugada se evadiria da casa velha e miserável da Graça. A roubar na fuga a última peça de ouro que a filha mais velha guardara da necessidade, recordação de um amor que deitava a perder. Para trás Marília deixava uma família e uma vida destroçada. Credores, desesperos, ira, vidas em cheque, um volumoso processo-crime, os advogados de um banco de cabelos em pé – “Mas quanto?” – “Quanto?” – “Sim, valores.” – “Ninguém sabe bem. Seiscentos mil Euros, talvez mais. Eu e o meu pai perdemo-nos. E desistimos.” – “E o dinheiro, foi para onde?” – Sara encolheria os ombros – “Casinos, luxos, desavarios. Amantes. Não sei, Pedro. Nunca conseguimos perceber tudo, apenas partes. A minha mãe manteve uma vida dupla que… … olha…” – abana a cabeça em desalento. Toalha ao chão para uma filha cansada – “E os outros? O teu pai?” – “O meu pai... … a empresa teve que fechar. Arranjou emprego numa oficina. Vai vivendo.Vamos vivendo. Manda-te um abraço. Disse-lhe que jantava contigo. Ele gostou sempre muito de ti. Sente vergonha de tudo, sabes?” – “Que não tenha. Manda-lhe outro. E a tua irmã?” – “A minha irmã preocupa-me. Tem muita raiva. Isolou-se. Não consigo comunicar com ela.” – a voz embarga-se – “Então?” – “A Filipa não está a aguentar tudo isto, não creio que aguente” – “Merda…” – Pedro atónito – “Não sei o que te diga… … o que é que eu posso fazer para te ajudar?” – A loira meneia a cabeça – “Nada, Pedrinho, escuta… … eu quis-te ver para que soubesses, entendes? Que percebesses. Que a minha vida e as minhas opções não foram nada fáceis desde que te abandonei” – agora Sara chora enquanto fala – “Eu… … eu se pudesse… … e quisesse ser egoísta… … dava tudo para voltar atrás. E ter-te. Estar contigo. Mas troquei isso. Na ilusão de ter o amor da minha mãe. De ambos podermos ser felizes. Eu e tu. De encontrar um amor que não soubesse dos erros dela. Que não tivesse que odiar. Quis isso. E consolei-me em que te desiludia mas deixava que tivesses a tua vida sem os pesos das minhas merdas. Percebes?” – Pedro acede – “Sim…” – “Foi tudo tão duro, querido. Ao início dei por mim a vegetar, a encher-me com a merda dos anti-depressivos. A arrastar-me no hospital. Dei por mim a beber. Porra, Pedro... … eu quis-me destruir! Passei metade deste ano a destruir-me e a pensar em morrer, como a porra de uma borderliner! Numa espécie de alucinação má que nem te sei explicar. Dormi com os homens errados. Odiei-me. Odiei a minha mãe. Odiei-te a ti por não estares ali – o tom de Sara é pausado, como se as suas palavras nem contivessem o rastro de tempestade e devastação que descrevem Infinitamente triste. E agora as lágrimas já correm em caudal pelos olhos de ambos – “Quando estás mal o mundo alimenta-se de ti, acredita. Nunca fiques mal, Pedro, nunca deixes que te façam mal. Há sempre os que te fazem mal, se puderem.” – Silêncio – “Dormi com o Rui, merda… … cheguei a esse ponto. Que esse… … asco, se aproveitasse do meu desespero.” – “E agora…?” – “Estou melhor, estou melhor… … estou a fazer psicoterapia. Estou a resolver as minhas merdas. A tentar ajudar o meu pai. E por isso te quis ver. Quis que soubesses. O quão importante foste e és para mim…” – “Sara… … eu não sei se nós dois ainda poderíamos…” – o dedo delicado de Sara repousa-se nos lábios para que se calem – “Psssiu. Não digas nada. Eu sei. O futuro é de Deus e o presente eu sei que não é nosso. No início de Janeiro parto para Inglaterra. Vim também para me despedir de ti.” – “Inglaterra?” – “Vou trabalhar para Londres, fazer investigação.” – encolhe os ombros – “Vou tentar reconstruir a minha vida. Quem sabe a vida ainda tenha alguma coisa para mim…” – Pedro hesita. Nunca pensou que aquele dia e aquela oportunidade chegassem. Mas, sim, hoje é o dia certo para redimir o passado e espantar fantasmas a salvaguardar o futuro. Sara tem razão – “Sabes, Sara, há algo que também te quero dizer… … em tudo o que sucedeu. Eu hoje também sei onde te falhei.” – “Oh, Pedrinho, tu nunca me falhaste…” – “Escuta, falhei sim. Lembras-te daquele dia em que pedista que te tirasse de casa?” – Os olhos de Sara, baixam à mesa – “Sim, lembro...” – Foi aí. Devia ter feito o que me pedias.” – “Oh, tu não…” – “Agora sou eu que te peço, não digas nada. Sei que sim, que o devia ter feito. Que se nesse dia tivesse sabido ser mais homenzinho, tudo talvez tivesse sucedido de forma diferente. E peço-te desculpas. A sério, Sara, perdoa-me.” –Um momento de mágica suspensão do tempo. Um esgar de doçura melancólica - “Eu perdoo-te. Há muito que to perdoei.”
O jantar prosseguiria pelo serão na Mercearia da Comida, no coração do Bairro Alto. Os amantes perdidos pelo destino davam pela última vez uma mão terna sobre a mesa. Saborearam os despojos da garrafa de vinho tinto sobre a mesa e recordaram mil e um momentos do amor que os trouxe de mãos dadas desde a inocência da adolescência até serem adultos. Raramente as coisas são para sempre. Mas ambos sabiam que ainda assim aquele amor valera a pena e marcara duas vidas. E por isso foi uma noite para que se recordassem, antes que se despedissem. As férias no Algarve, a “lua-de-mel” de Cuba, as tardes de ternura nos jardins de Belém, a mordiscar pastéis de nata, os passeios, as conversas, a química das peles. Ah, o amor, merda, o amor!” – perante o olhar intrigado do magriço que generoso concede tempo para lá do regulamentar aos dois clientes que sobram num restaurante que já fechou a porta, Pedro e Sara riem numa ilha efémera de felicidade a dois, enquanto as lágrimas lhes lavam o rosto. Por uma última vez a dois.
I see you, the only one who knew me
And now your eyes see through me I guess I was wrong
So what now it's plain to see we're over
And I hate when things are over when so much is left undone
And I said, ?What about breakfast at Tiffany's?
She said, "I think I remember the film?
And as I recall, I think, we both kinda liked it
And I said, "Well, that's the one thing we've got"